Um vento que sopra…

 

Um vento que sopra mais forte, prenúncio de acontecimento, sopra do lado do mar. António Candeias, mais conhecido por Toino da horta, conduz a sua Aixam D-Truck Drop Side pela estrada regional que vai ter à aldeia. Não sabe dizer corretamente o nome da sua viatura e por esse motivo chama-a carinhosamente de “Burrinha”. Sabe sim que não precisou de tirar carta. Também sabe que chamam à sua burrinha “Porra velhos” e que graças ao amigo Zé lá do stand conseguiu-a por bom preço pagando em prestações que mesmo não sendo suaves lhe levam quase metade da reforma. Toino da horta sente um orgulho enorme quando se senta na sua Burrinha. Tinha uma velha motorizada à qual adaptara uma caixa de madeira, mas a idade e o vício dos tintinhos tinha-o levado ao chão umas três vezes, vezes demais para seu gosto. Foi assim que decidiu dar descanso à sua “Linda”. Não a vendeu nem a deitou fora pois o Toino não é homem de deitar nada fora. Tapou-a com um plástico e acomodou-a ao fundo do barracão junto com a balança das batatas. Mas hoje o Toino da horta vem satisfeito. Conduz a pequena camioneta ouvindo a rádio local. Sabem-lhe bem as palavras mas não lhes dá muita importância. O rádio foi um acessório desnecessário mas o que é um homem sem a satisfação de um gosto. Toino vem satisfeito porque a pequena quinta que lhe dá o sustento está tratada e arranjada e porque a sua Burrinha lhe poupa as pernas cansadas e cheias de varizes escuras e gordas. Mas o vento que sopra mais forte não é só vento, revela-se empurrão de ar, ar pressionado por algo potente e agressivo.

O objeto mecânico, negro, puro-sangue de potência teutónica, pertence ao Tiago Drummond, homem moderno, burguês de sucesso, liberal convicto. De corpo tratado e bronzeado é homem de crenças infalíveis uma das quais é sobre a meritocracia. Ele tem o que merece e os outros também. A dita cuja justifica todos os seus sucessos e todos os insucessos alheios. Talvez seja por esse motivo que conduz o seu objeto negro como se este possuísse direitos vedados a outros. Talvez por isso se tenha irritado com a “Burrinha” do Toino. Ele não conhece o Toino e não sabe que a empregada lá de casa compra as verduras do velho homem do campo, as verduras que tanto aprecia e às quais atribui parte do seu ar de invejável saúde. Também não sabe que o Toino vai distraído usufruindo do pequeno conforto da sua “Burrinha”. Tiago Azevedo dos Santos Drummond avalia com desconforto a situação e toma a decisão mais acertada pois Tiago nunca se engana. A ultrapassagem é feita a alta velocidade fruto da cavalaria por debaixo do capot negro do seu puro-sangue.

António Candeias, o Toino da horta, faleceu no local do acidente. A viatura onde seguia despistou-se e foi encontrada no fundo de um barranco, um pouco antes da curva da cerca velha. O teste ao álcool deu negativo e o acidente foi atribuído a uma distração do condutor.

Toino sentiu o vento que vinha do mar e apercebeu-se da silhueta negra no último instante, um pouco antes da curva apertada. A silhueta, qual monstro agressivo, devorou a estrada à sua frente, cegou-o com a sua tecnologia de ponta, com o seu estatuto social. Toino, assutado virou bruscamente o volante e a sua burrinha caiu lentamente pelo desnível do terreno ao mesmo tempo que simulava um arremedo de capotamento. A Burrinha acabou virada ao contrário dentro de um pequeno riacho. Toino já não se apercebeu da água que entrava lentamente pela janela aberta. O pescoço partido pendia de forma desarticulada para o lado esquerdo.

Tiago Drummond chegou à sua vila, no monte das rosas, a tempo de fazer um sumo de laranja antes de a sua mulher chegar. Sentado no alpendre, saboreando um sol soalheiro, apreciava o sumo de tão benditas laranjas. Pensou para si, bem hajam a laranjeira que as gerou e o homem que dela cuidou. Tiago dos santos Drummond desconhece a proveniência das laranjas, ignora que foram compradas pela empregada ao homem que lhe vende as verduras.

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