Cíclo I (descendente)

 A janela aberta deixa entrar os aromas da primavera. Lá dentro o quarto fede a odores humanos, excreções noturnas, produtos resultantes das reações químicas que mantém a vida. Na cama um corpo nu e desarticulado repousa como um despojo, marionete largada depois de um espetáculo milhentas vezes repetido. Breves espasmos intermitentes emprestam um movimento inusitado ao corpo naufragado nesta serena letargia onde o pensamento é ausência. A porta do quarto abre-se muito lentamente e da fresta escura surge o rosto de uma mulher. Os seus olhos negros percorrem o corpo do homem numa espécie de avaliação. A mulher baixa a cabeça e talvez feche os olhos em resignação. Pudesse o seu cabelo longo deixar antever o gesto e teríamos a confirmação. Certo é que a porta, ainda agora aberta, acaba por se fechar. Pressentem-se passos que se afastam, passos leves de alguém leve ou então de alguém com total controlo sobre a sua leveza. Existem pessoas assim, existem sem existir e mesmo que a sua volumetria as imponha visualmente, acabam por passar totalmente despercebidas. Entretanto o corpo adormecido, como que afetado pela presença fugaz da mulher, começa a despertar. O espreguiçar lento e sofrido é acompanhado de gemidos indecifráveis, lamentos de coisas esquecidas, resquícios de uma noite etilizada. O sol entra radiante pela janela aberta e o chilrear dos pássaros junta-se aos aromas atrás referidos. O homem encontra-se agora sentado na cama. De cabeça baixa e de costas voltadas para a janela pragueja baixinho. Da boca saem-lhe palavras renovadoras, o “foda-se” redentor, o “cona da mãe” como local de refúgio, o “caralhos ma fodam” como penitência para confissões não assumidas e por fim um “puta que pariu a merda da luz” como justificação para a cegueira e a inércia. Sem forças para se levantar procura na memória uma âncora, uma referência que possa servir de ponto de partida, mas os pontos de partida são sempre os mesmos e as chegadas também. A saída do trabalho como momento libertador, a mesa da cervejaria como desculpa, os que chegam e os que partem e ele que fica e resiste. Alguém o leva para uma última ronda e depois o esquecimento, o corpo cansado e sem forças, o enjoo constante, pronuncio de lesões graves no fígado. O homem tem um nome, João. Poderia ser Paulo, Pedro, Tiago, José, mas não, o seu nome é João, João de Jesus Batista. João não batizou Jesus mas levou a sua filha à pia batismal onde lhe concedeu o nome de Maria e Maria, que não ficou Jesus, ficou Batista. Tem também o nome de família da mãe, mas a mãe encontra-se na cozinha a chorar e por respeito vamos deixar a descendente dos Pereira com a sua mágoa, até porque, quando o João entrar na cozinha, já não a encontrará. Aliás poderia afirmar, com grandes hipóteses de acertar, que o ruido seco ainda agora percebido foi provocado pelo fechar cuidadoso de uma porta, mais concretamente a porta da rua. João não tem ouvidos para tamanhas subtilezas. O João tem o estomago azedo, a garganta seca, a cabeça num eco perpétuo e a bexiga cheia que o obriga a uma ida apressada à casa de banho. A trajetória enviesada leva-o a embater nalguns obstáculos inocentes entre os quais se encontram, uma cómoda, uma cadeira e o cesto da roupa, último entrave para o acesso à sanita. O João está nu e num último arremedo de decisão decide aliviar-se dentro da banheira ao mesmo tempo que liga a água quente. O banho foi demorado. Não foi um banho higiénico com pormenores de limpeza dignos desse nome. Foi antes um deixar escorrer a água quente pelo corpo entorpecido, um acordar aquoso, um expurgar de suores. Saiu da banheira e mal se secou. Largou a toalha ao acaso no chão do corredor e dirigiu-se à cozinha. Não estranhou o silêncio, não estranhou a louça por lavar, não reparou no bilhete preso na porta do frigorífico por um íman-Mickey sorridente. Limitou-se a abrir a porta do frigorífico e a retirar do seu interior uma das inúmeras garrafas de cerveja espalhadas por todas as prateleiras. Largou-se numa das cadeiras junto da mesa e aproveitando um talher desarrumado abriu a garrafa levando-a à boca. Despejou-a pela metade e pousou-a com alguma violência, mais provocada pelo desmazelo do que por outro motivo qualquer. Depois debruçou-se sobre a mesa e adormeceu.

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