Perspetivas (decima terceira abordagem)
Dois deuses aposentados descem pausados a rua. Entre si dividem mais de centena e meia de anos. Vêm em silêncio e deles não deriva nenhuma perturbação. Aproximam-se do café e atravessam a esplanada com reverenda dignidade. O degrau que os separa do interior do estabelecimento é um obstáculo. Ultrapassado com vagar meticuloso permite-lhes uma entrada serena e cautelosa. Escolhem cuidadosamente a mesa onde irão repousar os seus físicos gastos. A luminosidade e o recato de uma mesa junto à janela serão critérios primordiais para que a escolha se concretize. A abordagem é realizada solenemente e com gestos de elevada teatralidade que revelam a importância dada ao momento. Os deuses aposentados vivem cada momento com uma intensidade insuspeita e pouco compreendida. Os deuses aposentados sabem que a cada segundo que passa ficam um segundo mais perto. O fim não é um acontecimento longínquo mas antes uma convocação anunciada. A rapariga-feiticeira observa, com olhar meigo, os gestos dos deuses aposentados. A futura mulher-criadora não precisa de grandes cuidados na sua abordagem. Poderá permitir-se ser ela, bonita, de sorriso fácil, olhar puro que transpira juventude em cada pigmento colorido da sua íris. Não precisará de aproximações cautelosas, nem de jogadas ludibriosas. Não necessitará de escusadas reverências nem de subserviências encenadas. Aproximar-se-á da mesa e desejará um “bom dia” luminoso e insinuará os “dois cafezinhos” do costume. Receberá o habitual elogio à sua beleza e á sua simpatia, elogios honestos de quem já não precisa mentir. A cena decorre de tal forma serena que em nenhum momento os dois Deuses-criadores-menores e a Deusa-pagã-maior sentiram necessidade de desviar a atenção dos seus cetros para a observar. A rapariga serve com satisfação os dois deuses aposentados. A futura Deusa-pagã-maior inveja o desprendimento com que os deuses aposentados usufruem do seu café.
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