CICLO II (Linear)

 

Miguel está reformado há dois anos e ainda não se habituou às novas rotinas. Os primeiros meses passaram como uma agradável disrupção perante uma rotina que o ocupava, mas mantinha infeliz. Os últimos anos tinham-lhe arruinado o casamento levando-o a um divórcio sem traições mas com muitos ressentimentos. Das partilhas amigáveis ficou com o suficiente para o ajudar na compra de um pequeno apartamento, em segunda mão, no centro da cidade. A filha, com vida feita e curso acabado, decidiu emigrar e divide as duas semanas que passa em Portugal entre a praia, Lisboa e a casa da mãe. Para ele sobram dois dias, dois dias para despedidas ou para algum pedido de última hora. Têm uma relação cordial, mas a filha nunca lhe perdoou o abandono do casamento e a mãe foi sempre muito mais que uma mãe, enquanto ele, limitou-se a ser um pai. Faltaram as cumplicidades que criam os verdadeiros laços de amizade. Agora, sozinho, arranjou a companhia de um rafeiro que lhe preenche as rotinas em falta. Assim sendo, a vida de Miguel é monótona e solitária. Hoje, em particular, o dia apresenta-se como um longo calvário onde as rotinas se comportam como sedativos ecológicos, atenuadores do espaço e do tempo. Tomou o pequeno-almoço seguindo todas as regras a que se impôs e arrumou a cozinha com um perfecionismo exagerado que quase roça a paranoia. O rafeiro de pelo curto, a única imposição que fez quando o foi buscar ao canil municipal, segue sem trela e ao seu lado. Dir-se-ia que adaptou a personalidade melancólica do dono e que a sua presença nada mais é do que a versão canina do homem. Miguel nunca chegou a dar-lhe um nome. Passou duas semanas remoendo entre nomes absurdamente humanos e nomes estupidamente animais. Ao fim de um mês apercebeu-se que não precisava deles para se fazer entender, no fim de contas o cachorro também não se incomodava com a ausência identificadora, muito embora, e para fins de registo legal, o animal tivesse ficado com o nome de “Cão”. A relação entre estes dois seres não é sustentada em palavras mas sim em afetos silenciosos. Os passeios matinais são expurgações da alma para o dono e alívio para o animal, no entanto, o dia de hoje trouxe algo diferente à rotina de Miguel. Ele não saberá explicar o porquê de ter olhado para a saída daquele prédio amarelo de três andares precisamente no momento em que aquela mulher, extremamente magra, vagamente desalinhada e com uma criança pela mão, descia as escadas vagarosa e de cabeça baixa. Isso ele não saberá explicar assim como o fascínio que esta aparição exerceu sobre ele no momento em que ela levantou a cabeça e a imagem de fragilidade desapareceu por completo. Dir-se-ia que estava na presença de outra pessoa. Até a criança, inicialmente tão submissa, parecia ganhar outra vida. O Miguel não era homem de assombros e muito menos de deixar transparecer as suas emoções perante algo que o deixasse verdadeiramente perturbado mas, esta visão de poder numa mulher aparentemente tão frágil, fez com que permanecesse parado e sem conseguir afastar o olhar. O próprio cachorro, alma gémea do dono, sentou-se e de forma cúmplice uniu-se à contemplação de Miguel. Ficou a observá-las enquanto elas desciam a rua. Mesmo sem as conhecer pessoalmente sabia um pouco da sua vida, devido às conversas que ouvia no café que ambos frequentavam. Eram vidas banais, daquelas que só têm importância para quem as vive. As vizinhas, que viam na história daquela mulher um alívio para as suas próprias desgraças, falavam de toxicodependência, alcoolismo, violência doméstica, infidelidade, dificuldade em manter um emprego e um sem número de outros problemas que ornamentavam com comentários, algumas vezes abonatórios e muitas vezes acusatórios, numa versão deturpada da justiça Salomónica. Miguel pensava em tudo isto enquanto as via afastarem-se até que, sem uma razão para a qual encontrasse uma explicação, decidiu segui-las. A explicação irá encontra-la mais tarde, quando dela precisar para justificar as suas ações.

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