Sempre a mesma estrada
Sempre a mesma estrada, o mesmo asfalto lunar que desafia a perícia dos condutores de playstation. Eu, que não fui bafejado por tais capacidades, entretenho-me a acertar em todos os buracos que têm a coragem de me fazer frente. A estrada leva-me ao trabalho serpenteando pela serra e eu, agarrado ao seu pescoço, cavalgo esse monstro meigo. Trinta minutos de solidão onde tento reorganizar a minha vida. Levo sempre a rádio ligada, "Antena 1" por lealdade, "Antena 1" por ser generalista, "Antena 1" porque a associo a uma coisa primeira, a rádio original. São coisas que me vêm à memória talvez porque as tenha ouvido. Na verdade, é mais a preguiça que me leva a deixar a sintonia em paz e a entregar-me aos sons que me quiserem dar. Sim, a rádio para mim é uma companhia. Não tenho que lhe responder, não tenho que sorrir. Posso manter a minha boca fechada sem vomitar opiniões, posso perder-me nos tristes chaparros meio despidos que, perfilados aleatoriamente, tentam preencher a paisagem. Nos dias chuvosos de inverno imagino-me plantado no meio deles, também eles silenciosos e sem conversa fiada. Ouço na rádio que lhes deram caça. Sem direito a refúgio, e sem estatuto, são abatidos pela raiz. Parece que vêm ai uns painéis, umas coisas meio feias, de baixo porte, que cobrem o solo e põem as coisas eléctricas a funcionar. Energia verde, é o que dizem. Melhor seria se os pintassem de verde. Talvez que as fotos no Google Earth ficassem mais engraçadas. Há dias mostraram-me umas imagens, no PC lá do trabalho, em que se viam umas manchas castanhas junto ao Guadiana, e que me disseram ser esses tais painéis. Parecia mais o chão da sala do meu ex-amigo André, uma coisa a imitar madeira, mas que não é madeira. Mas também, hoje tudo o que parece não é. Quando vou na estrada esqueço-me das mentiras. Das mentiras da minha mulher quando me traiu com o João, com o António e com o André. Sim, o André ficou com ela. Se calhar foi por causa do chão da sala. Bem, do chão da sala e do mercedes em segunda mão, uma bomba, que foi buscar à Alemanha, e também da vivenda que construiu com o dinheiro que a tia lhe deixou de herança. A puta levou-me a minha Aninhas, a mais nova, e deixou-me o Pedro que, com quinze anos, se lembrou de meter umas merdas. Raio do gaiato fica sem dormir noites inteiras com as cenas que toma. Podia fumar umas coisas, mas não, tinha logo de nadar num lago com piranhas. Também ele me mente. O que me chateia nas suas mentiras é que nem se dá ao luxo de mentir bem. Está-se cagando para mim, o pai que continua a bulir no duro para lhe manter os vícios. A cabra da minha ex foi esperta, levou-me a minha Aninhas, a luz dos meus olhos, e deixou-me o raio do rapaz. Não saiu a mim, eu que tudo fiz com comedimento, que remédio, com o que o meu pai bebia tinha que cuidar de tudo, da minha mãe e dos meus três irmãos mais novos. Sacanas de uns ingratos, foram todos para a Europa e nem um telefonema.
Sim, saiu ao avô, talvez morra cedo como ele. Assim evita foder os miolos de alguma pobre rapariga, como o meu pai fez à minha mãe e que a deixou num caco. Não posso esquecer-me de ir à Santa Casa fazer-lhe uma visita. Qualquer dia apaga-se e ainda sou eu que vou carregar com a culpa, parvo como sou é o mais certo. Ainda bem que a hora atrasou. Gosto de ver o nascer do sol por detrás da planície, o ar limpo e o cheiro a terra que me entra pelo nariz. Gosto de conduzir com os vidros meio abertos, não é bem meio, é para ai um terço, o suficiente para me manter acordado. Ok, confesso que comecei a abusar um bocadinho do álcool, tinto ao jantar e uns medronhitos para atamancar. Ultimamente tenho adormecido no sofá a ver televisão. Acordo com o moço a chegar a casa. Muitas vezes tomo um banho e arranco para o trabalho sem tomar o pequeno-almoço. Compro uma bucha no café, que fica ao pé da oficina, e lá vou eu vergar a mola. Ainda pensei acabar com esta merda toda com a porra de um tiro nos cornos, mas aqui há uns dias, quando vinha do trabalho, acabado de fazer um curva apertada, dei com um corpo de um homem pendurado numa árvore. Já lá estavam dois GNR's, que tentavam afastar uma moça que gritava desesperada. Depois contaram-me a história; parece que a mulher do homem o tinha abandonado, a ele e à filha, a jovem rapariga que gritava, levando-lhes todo o dinheiro. Certo é, que aquela imagem tirou-me aquelas ideias da cabeça.
Ainda gosto dela. Sempre gostei. Se ela voltasse, e me pedisse com jeito, eu aceitava-a. Talvez o miúdo atinasse e eu deixasse de beber...
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