OS OLHOS DO GATO IV
Na penumbra algo se agita. A silhueta furtiva de um corpo alado desloca-se no ar morno da noite deixando um rasto de ausência. Percorre os espaços vazios, deixados pelos prédios abandonados, deslizando silenciosa na direção do feixe de luz. O gato, totalmente iluminado, permanece imóvel. Exibe a sua pose com orgulho felino. Os seus olhos, repletos de luz, revelam-se verdes. Liberto de receios contrai as pupilas até que estas se reduzam a dois riscos negros. A silhueta alada revela-se aos poucos. Dois metros de envergadura suportam um corpo preparado para matar. Num repente, e após uma curva apertada, inicia um voo picado em direção ao gato que permanece inerte. Num último instante mostra as suas garras afiadas que penetram no corpo do felino. Aproveitando o impulso assassino, a água disfere violentas bicadas na cabeça do animal capturado até que este se queda, imóvel, espalhado no chão. Junto dele a águia ergue-se juntando as asas ao corpo. O vulto feminino, que permanece na janela, solta um grito de satisfação. É um grito solitário e que não originou qualquer movimento a quem o soltou. Apenas a ave de rapina reagiu ao apelo e, como que agradecendo, baixou a cabeça por três vezes antes de se debruçar sobre o cadáver do felino. Tento perceber o que se passa, mas sem sucesso. Apercebo-me de que efetua um trabalho minucioso com o seu bico afiado. São gestos delicados que tentam retirar qualquer coisa da cabeça do gato. Ambos permanecem sob o intenso feixe de luz. Não consigo evitar a comparação com uma mesa de operações. A analogia causa-me desconforto pelas memórias que me induziu. Tento libertar-me do sufoco, causado por essas imagens do passado, procurando a silhueta feminina na janela. Sem perceber porquê, visto que ela permanece imóvel, a sua visão revela-se sinistra. Novamente uma frase me é sugerida...o que achas de Ártemis? Incapaz de responder desvio o olhar para a ave de rapina. Novamente levantada, segura no seu bico um fio com uma pequena bola na ponta. Olha para mim? Não sei...
(A partir do livro "Os Olhos do Gato" de Moebius & Jodorowsky. Interpretação livre)
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