OS OLHOS DO GATO II
Por entre os escombros da cidade vazia a sombra furtiva procura uma vítima. O raio de luz atrai a presa e o predador. Na noite, um zumbido eléctrico embala o ar tépido. A presa aproxima-se lentamente do circulo luminoso traçado no chão. Pequenos objectos mecânicos dispersam os seus fragmentos ao acaso. A integridade comprometida não reage, inanimada que é, rende-se ao ser vivo que caminha entre as suas partes. Um emaranhado de cabos pende de uma janela vizinha derramando-se pelo chão. Pressente-se neles uma ligeira vibração. De pelo negro, a figura animalesca funde-se na noite, atenta aos sinais de perigo. Do seu focinho saem pequenas antenas que procuram no ar a dimensão de todas as coisas. O seu movimento não provoca o mais pequeno ruído e funde-se na essência dimensional do que existe. A sua pequena cabeça surge por detrás de uma esquina gerando uma sombra que se funde na parede, provocando a ilusão de estarmos na presença de uma única entidade, simbiose perfeita entre a matéria viva e a matéria inanimada. Lá em cima, outro ser se dilui na escuridão. Dele apenas a presunção de movimento, a ligeira deslocação do ar camuflada de brisa nocturna. A vida esconde-se no meio do caos silencioso e da destruição consumada. O acto fica registado na memória do observador que no entanto nada viu para além da silhueta da janela. A negra figura permanece imóvel obrigando-me a suspender a respiração. Quanto tempo poderei aguentar suspenso no tempo, preso na teia da imobilidade visualizada? Entretanto a cabeça do felino mantém-se estática e eu, tal como ele, perfilo-me em estátua tentando-me invisível.
(A partir do livro "Os Olhos do Gato" de Moebius & Jodorowsky. Interpretação livre)
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