OS OLHOS DO GATO V
A ave de rapina levanta voo, carregando consigo, nas garras, dois pequenos objectos redondos. De cada um destes objectos pende um fio. A ave eleva-se no ar por cima dos edifícios mais elevados. No seu voo circular parece procurar algo. O vulto na janela agita-se em convulsões. Como que respondendo a esse frenético movimento, a ave início um movimento descendente em direção à janela onde se encontra o vulto. Da minha janela observo a cena apreensivo. Tento um grito de aviso que me morre na garganta, um aceno de urgência que não se concretiza. Tudo em mim é imobilidade, à excepção do meu olhar. Por duas vezes a ave circunda a janela numa avaliação criteriosa. De repente, um gesto convidativo do vulto provoca a investida da ave que recolhe as asas na sua aproximação ao parapeito. Pouco antes de poisar, larga, à vez, cada um dos objectos redondos na mão da silhueta que parece agradecer-lhe. A ave volta a erguer-se nos ares. Pairando a pouca altitude, parece aguardar instruções. Entretanto, o vulto parece colocar os dois objectos no lugar dos seus olhos. Num primeiro movimento de cabeça parece olhar para mim como se há muito me tivesse pressentido. Sinto-me tentado a ocultar a minha presença por detrás do cortinado, mas desisto dessa intenção quando o vulto, num movimento brusco, se coloca de costas voltadas. Assim permanece durante alguns segundos até que, num repente, começa uma espécie de dança. De braços no ar, agita-os freneticamente, enquanto rodopia o corpo, fazendo-o dobrar de forma pouco natural. "Consigo ver-te. Agora sei quem tu és.". Ouço esta voz e, sem saber porquê, tenho a noção exata da sua origem. Sem abrir a boca sinto que lhe respondo, "Também eu consigo ver-te, mas não sei quem és". Assim como começou, o vulto termina bruscamente a sua dança. Leva as duas mãos ao rosto e lança dois objectos na escuridão. Retoma a sua posição inicial no mesmo instante que a ave de rapina, interrompendo o seu movimente circular, se lança aos céus por cima dos edifícios mais altos. "Procura Ártemis, trás-me um outro olhar, um olhar de criança". Quero ir-me embora e fechar a janela, mas não sou capaz. "...um olhar de criança...de criança...criança". Procuro a ave no céu e espero...
(A partir do livro "Os Olhos do Gato" de Moebius & Jodorowsky. Interpretação livre)
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