OS OLHOS DO GATO VI

Estou à janela. Deixo o meu olhar perder-se no voo da ave de rapina. A silhueta feminina lança no ar um aceno. Inconscientemente levanto a mão direita numa resposta pouco convincente. Será um sorriso aquilo que pressinto? Sorrio também. Pelo canto do olho procuro a ave que, aparentemente, se perdeu no céu. 

-Procuras Ártemis? 

-Sim, não sei, quem é Ártemis?

-A minha caçadora, o meu anjo da guarda.

-Para onde foi ela?

-Caçar, é o que ela faz, é a sua natureza.

-O que caça ela, a tua caçadora?

-Caça olhares.

-Olhares?

-Sim. Eu não vejo sem eles.

-Sem olhares?

-Não tenho olhos. Nasci sem eles. No seu lugar tenho os buracos mais negros do mundo.

-Então como me consegues ver?

-Eu não te estou a ver. Sei apenas que estás ai, sinto a tua presença na imensa escuridão do meu mundo. Há pouco pude olhar para ti com os olhos do gato, mas agora já não os tenho, deitei-os fora. Ártemis foi procura-me um novo olhar.

A voz feminina insinua-se no interior da minha cabeça. Sem saber porquê respondo-lhe em voz alta, mas tenho a certeza que me ouviria mesmo que não o fizesse. 

-Um novo olhar?

-Um novo olhar. Pedi-lhe um olhar de criança. Quero ver um nascimento, um seio materno e a cor do seu leite. Quero ver o que perdi.

-E como vai Ártemis desenvencilhar-se para conseguir esse olhar?

-Trazendo-me os olhos de uma criança.

Fiquei sem resposta. Não conseguia acreditar na voz feminina que ecoava nas paredes do meu craneo, deixando um rasto de nojo e indignação. Tentei um esboço de revolta que me morreu na boca. Tal como eu desconfiava o vulto ouviu o que eu calei.

-Ficaste chocado? Não consegues acreditar no que ouviste?

-.....

-Não me respondes?

-Não sei o que dizer.

-Achas que sou cruel?

-Acho que não és humana.

-...

-Não dizes nada?

-Tem cuidado.

-Estás a ameaçar-me?

-Posso querer o teu olhar, ver o mundo com os teus olhos, perceber o teu ponto de vista. Sabes, eu sou muito curiosa.

-Ninguém tem culpa da tua deficiência.

-Tal como todos os seres que existem no mundo, eu sou um produto do criador. Ele permitiu-me sem olhos e curiosa, ele permitiu o desenvolvimento da minha natureza, ele criou o caos no mundo onde vivo, ele observa o espectáculo da minha vida desde a primeira cena. Acredito que o pano irá cair qualquer dia, e que ele irá aplaudir a sua criação. 

Não a vi chegar, não pressenti o vulto que se insinuou e que me arrancou os olhos. Gritei de dor e desespero. Deixei-me cair enquanto sentia o sangue escorrer pela cara. Assim fiquei, chorando líquidos que não consegui identificar. De repente ouvi novamente o vulto.

-Sim, agora consigo compreender-te. Acho que tu também me compreendes.

Sim, conseguia compreende-la. Conseguia sentir a angustia negra da ausência de luz. Levantei-me e cheguei-me à janela. Pressentia a sua presença na janela. Virado na sua direção murmurei:

-Podes pedir a Ártemis um olhar para mim?

(A partir do livro "Os Olhos do Gato" de Moebius & Jodorowsky. Interpretação livre) 

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